As batalhas aéreas no conflito pelas ilhas Falklands (Malvinas) em 1982 invariavelmente trazem á mente imagens dos ameaçadores Sea Harrier cinza-escuros da Royal Navy a perseguir os Mirage e Skyhawk argentinos. Mas outro tipo de guerra ficou reservado para um pequeno grupo de 8 pilotos da RAF do No. 1 (F) Squadron que partilharam os mesmos porta-aviões dos colegas da Navy mas aos comandos dos Harrier GR.3 e que desempenharam difíceis e perigosas missões de ataque ao solo e reconhecimento. Muitas vezes minimizados e mal utilizados (alguns diriam mesmo, abusados) pelos oficiais da Royal Navy, que não compreendiam as capacidades do Harrier e recusavam-se a ouvir as pessoas que as compreendiam. Em comparação, as defesas antiaéreas argentinas eram um problema menor. Após a guerra foram esquecidos pelo público em geral, ofuscados pelo glamour dos pilotos de caça dos Sea Harrier, mas a verdade é que os pilotos dos Harrier da RAF tiveram um impacto decisivo nas batalhas mais importantes em terra, como a de Goose Green.
Mas estamos a adiantarmo-nos na história. Antes de lutar pela ilhas Falklands era necessário chegar até lá e no caso dos pilotos dos Harrier isso iria envolver, numa primeira fase, um longo voo desde a base da RAF em St Mawgan até á ilha de Ascensão no Atlântico Sul, uma distância de mais de 6700km, apenas possível graças ao recurso abundante do reabastecimento em voo. Durante vários dias de 24 horas ininterruptas de actividade frenética nas oficinas do esquadrão, os Harrier foram alvo de manutenção profunda e equipados com sistemas de ECM, compatibilidade com o AIM-9 Sidewinder, ajustes nos rádios, etc, etc. Ao mesmo tempo, todos os pilotos necessários foram chamados; desde aqueles que ainda não tinham terminado os seus cursos até outros que foram “convidados” a regressar de férias, de reforma recente ou de outros esquadrões. O Squadron Leader Jerry Pook conta mais pormenores;
RAF St Mawgan, Cornualha, 1 de Maio 1982 (Episódio 1)
“Depois do briefing fomos tratar da longa preparação para o voo de 9 horas que nos aguardava. Se o piloto não tiver bom senso um voo deste género a bordo de um avião com um cockpit tão apertado como o do Harrier pode criar uma quantidade enorme de problemas. Em relação ao reabastecimento em voo (teríamos de fazer pelo menos 12 contactos), tudo seria bastante rotineiro – excepto se encontrássemos mau tempo. Antecipando eventuais problemas técnicos, preparamos uma dúzia de aeroportos de diversão na costa da Europa e África. Em voo, o maior inimigo iria ser o tédio, e cada piloto levava o seu próprio pequeno kit de cassetes e livros para se entreter. Como outros equipamentos electrónicos do Harrier, o leitor de cassetes produzia uma qualidade de som atroz, por isso nunca pensei levar cassetes de musica. A minha preferência eram gravações de programas de rádio e comédias como o Goon Show e Hancock mas também levava um livro do Clive James para ler entre reabastecimentos. O Harrier GR.3 não tinha piloto automático mas era possível ajustar o avião suficientemente bem para permitir ler em voo. Mas os nossos maiores preparativos envolviam a comida e a bebida, sendo uma base “pesada” St Mawgan tinha muita escolha de qualidade nos alimentos. (A situação era muito diferente em Wittering e outras bases tácticas por onde passei, onde o fornecimento de comida decente para as tripulações era uma prioridade muito baixa; uma sandes de carne e uma maçã era o máximo que se poderia esperar.) Apesar de dispormos de “sacos-chichi”, eram quase impossíveis de usar. A minha técnica era beber muito durante o dia mas parar completamente 3 horas antes do voo; depois tinha de urinar o mais possível nessas 3 horas. Em voo, não iria beber nadinha até começar a sentir os efeitos da desidratação. Assim, iria conseguir completar o voo sem grandes agonias na bexiga."
O voo desde a Inglaterra até á ilha de Ascenção (uma distância de mais de 6700km) obrigou a uma enorme logistica e um planeamento cuidadoso.
"Após uma interminável espera na pista, a descolagem da nossa formação decorreu sem problemas. Como era típico nos caças da RAF não exista nenhuma arrumação nos minúsculos cockpits, o que não conseguíamos carregar nos bolsos do fato ia cuidadosamente espalhado em qualquer ranhura existente; mapas, cassetes, livros, caixas de comida e garrafas cobriam instrumentos e vários interruptores que esperámos não ter de accionar com muita rapidez… As condições climatéricas foram gloriosas durante a maior parte da rota, voámos sobre vastas formações de cumulus que se estendiam do horizonte em todas as direcções. A 10.000 metros os nossos Harrier eram pequenos pontos suspensos no azul, com cada piloto perdido nos seus pensamentos enquanto seguíamos as asas graciosas do nosso abastecedor (Handley Page Victor). De início o tempo passou excruciantemente devagar, o tédio de estar sentado passivamente sem grande coisa para fazer quase me fez accionar o assento ejectável para quebrar a rotina. O meu “entretenimento” de voo era cuidadosamente planeado, o simples acto de comer uma sandes era um enorme evento, algo a esperar com ansiedade e antecipação durante mais de uma hora! Os contactos de reabastecimento ajudavam a alterar a rotina, existia sempre o risco de algum piloto partir o cesto.
Não muito longe da ilha da Madeira um dos pilotos da nossa formação, o John Rochfort, anunciou pelo rádio que não conseguia transferir combustível de um dos tanques externos. Decidimos que era melhor ele aterrar em Porto Santo, o aeroporto mais próximo, assim o nosso Nimrod de escolta e busca e salvamento (que voava alguma distância á nossa frente) deu meia-volta, apanhou o John no radar e acompanhou-o até á Madeira. Como é óbvio, o John não tinha mapas da zona e quase que aterrava por engano no Funchal. O Nimrod acabou por conduzi-lo até á pista em Porto Santo, onde aterrou sem problemas. “Não vamos ouvir do John durante uns tempos”, pensei."
Os Handley Page Victor, assim como outros aviões de reabastecimento, foram absolutamente fulcrais para o sucesso da campanha Inglesa nas Falklands.
"Quando atravessamos o Equador os nossos reabastecedores fizeram meia-volta e regressaram rumo à Inglaterra enquanto um segundo Nimrod, saído de Ascenção, juntou-se a nós para a recta final. Senti-me meio esquisito da cabeça nesta altura, nada que uma boa bebida não ajude a passar. Para minha surpresa, a 200km apanhei um rádio-farol de Ascensão mas mesmo a menos de 20km ainda não víamos sinal da ilha no meio de um mar de grandes nuvens cumulus. Eventualmente, e já depois de estabelecermos contacto rádio, a ilha surgiu por detrás de uma nuvem. Parecia minúscula no meio de um oceano tão vasto. A única pista de aterragem estendia-se entre formações vulcânicas e ficamos aliviados pela ausência de ventos cruzados. Depois de um longo voo como este a aterragem final pode ser um exercício delicado e é necessário convocar todas as reservas de concentração para evitar dissabores. Felizmente conseguimos aterrar sem dramas desnecessários e enquanto nos dirigíamos á zona de estacionamento fomos recebidos entusiasticamente pelos pilotos e pessoal de terra da primeira “vaga”. Saí do Harrier dorido e cambaleante e o Bruce Sobey, o nosso Oficial Engenheiro, desafiou-nos a beber uma lata de cerveja ainda antes de irmos ao WC. Desafio aceite.”