Vignette - Dornier Do 217M U5+DK, o bombardeiro fantasma…👻

Eindhoven, tarde de 23 Fevereiro 1944 (Episódio 1)

A nossa história começa na base aérea de Eindhoven, onde o grupo de bombardeiros KG 2 (Kampfgeschwader 2) estava estacionado há quase quatro anos. Um mês antes, em meados de Janeiro, a Luftwaffe tinha dado início ao Baby Blitz, ou Operação Steinbock, a campanha de bombardeamento estratégico com o objectivo de retaliar contra os cada vez mais intensos bombardeamentos ás cidades e industrias alemãs. Militarmente esta operação fazia pouco sentido. Os Alemães deveriam guardar os seus valiosos (e escassos) meios aéreos para esperada invasão Aliada no Verão. Além disso, a média de qualidade e experiencia das tripulações dos bombardeiros era pobre e sofria ainda com faltas de combustível. A moral era desigual. Na Luftwaffe (e no geral das forças alemãs (Wehrmacht) não existiam comissões de serviço, onde um piloto serve por um período específico (seja em meses ou missões de combate), findo o qual, regressa á vida civil ou serve como instrutor. Não, na Luftwaffe os pilotos serviam até ao fim - fim da guerra, capturados pelo inimigo ou até ao…fim da vida. Londres era, provavelmente, a cidade com melhores defesas anti-aéreas nesta altura da guerra; vasta rede de radares, holofotes, canhões anti-aéreos e excelentes caças nocturnos (como o mortífero de Havilland Mosquito). Como tal, a expectativa de vida de uma tripulação de bombardeiros alemã era apenas de 15 missões. Mas a moral do povo alemão exigia que a Inglaterra também sofresse bombardeamentos e Hitler insistia na retaliação.


Este é um Dornier Do 217K (em tudo igual á versão M, excepto pela troca dos motores DB 603 por uns BMW 801 radiais) da KG 2 prestes a descolar numa missão. O Do 217 foi um avião bem desenhado e construído e a modesta carreira operacional deveu-se mais a factores externos do que a defeitos ou insuficiências do design.

Mas, de volta a Eindhoven. O piloto Oberfeldwebel Herman Stemann informa os seus três colegas, Unteroffiziere Walter Rosendahl (navegador), Hans Behrens (operador de rádio) e Richard Schwarzmuller (artilheiro), que vão sair em missão naquela noite. A primeira fase do voo será uma ligação até o aeródromo de Melun, em Villaroche, a Sul de Paris, onde todas as várias tripulações receberão o briefing geral por volta das 18h00. Sem perder tempo, Stemann reúne com os mecânicos de voo para preparar o seu Dornier Do 217M-1 (U5+DK) – um bombardeiro médio robusto, competente e apreciado pelos pilotos. È informado que o defeito no motor direito foi rectificado – é bom que assim seja, pensa Stemann, um Do 217M carregado é um avião pesado e necessita de toda potência dos dois V12 Daimler-Benz DB 603 para manter o mínimo de performance nos céus inimigos.

Depois de aterrar em Melun as tripulações recebem os detalhes da missão que os espera; vários alvos na zona de Croydon e Londres. Às 20h20, quinze aviões iniciam a viagem rumo a Oeste, sobrevoando Dreux a 300 metros de altitude, e de seguida ganhariam altitude rumo a norte, entrando no Canal da Mancha perto de Fecamp, agora a 5400 metros de altitude. A entrada em Inglaterra seria por Eastboune, em Sussex, ainda a 5400 metros, seguido de um ataque em mergulho até aos alvos na zona de Londres, com a largada das bombas a 3900 metros. Após o ataque o regresso a Melun seria feito á melhor velocidade possível. Bom, pelo menos era esse o plano. Mas para Stemann as coisas começaram a correr mal ainda dez minutos antes da descolagem em Melun – o motor direito voltou a dar problemas. Mas mesmo com esse motor limitado a 90% da potência máxima, Stemann decidiu continuar e descolou, com atraso mas sem incidentes - o relógio marcava 20h55.

Londres, noite de 23 Fevereiro 1944 (Episódio 2)

Carregado com duas toneladas de bombas incendiárias a bordo, o Dornier Do 217 atravessou o Canal da Mancha por Fecamp a uma velocidade de 280km/h mas, infelizmente para a tripulação, voavam a 4500 metros, em vez dos desejados 5400 - a falta de potência não permitia mais. Ao entrar no espaço aéreo Inglês, sobre Eastbourne, por volta das 22h05-22h15, continuavam sem conseguir ganhar altitude mas, mesmo assim, decidiram continuar até Londres. Mas os defensores estavam preparados. O radar da RAF tinha detectado os bombardeiros ainda em França, pelas 21h10, o que lhes permitiu preparar toda a estrutura de intercepção. As baterias anti-aéreas de 3.7in e os respectivos potentes holofotes escrutinavam os céus, vigias e oficiais de ligação preparavam os rádios e as bases de caças nocturnos activavam o alerta máximo.

O céu nocturno estava limpo, demasiado limpo para as tripulações de bombardeiros alemãs. Era possível visualizar a olho nu os aviões inimigos, mesmo a uma altura de 4500m, apesar da camuflagem negra dos Dornier. Sem demora, os holofotes começaram a iluminar o avião de Herman Stemann num feixe de luz ofuscante. O piloto executou as manobras evasivas possíveis com o pesado e “coxo” avião – mas sem efeito. O bombardeiro largou o seu suprimento de chaff, pequenas tiras metálicas para reflectir e confundir os radares, mas de nada valeu, o olho humano dos operadores dos holofotes não é fácil de enganar e é imune a chaff… Pior ainda, outros holofotes concentravam a atenção no azarado U5+DK e os projécteis de artilharia de 13kg dos canhões anti-aéreos explodiam cada vez mais perto. Stemann notou que o céu parecia mais escuro para Oeste e mudou ligeiramente de rumo para escapar á intensidade do fogo inimigo.


Um Dornier Do 217M-1, propulsado por motores DB 603 e com hélices de quatro pás (o BMW 801 da versão K era equipada com hélices de três pás). Em 1944 o nível de performance do Dornier não era suficiente para sobreviver perante as defesas inimigas – principalmente frente aos Americanos e ingleses. Faltava-lhe velocidade e/ou agilidade e/ou tecto operacional para iludir as defesas. O Do 217 era “bom” em todas as categorias mas perante a oposição, “bom” já não era suficiente.

Eram agora 22h30, altura prevista para o bombardeamento, mas o Dornier de Stemann ainda estava a Noroeste de Londres e sem conseguir se aproximar da área alvo. Mais importante, as manobras tinham custado altitude – o Dornier voava agora a 2700 metros, perigosamente baixo. Um projéctil explodiu perto do asa direita. As luzes do cockpit, essenciais para o voo por instrumentos, apagaram-se. Labaredas vermelhas e brilhantes saíam do escape do motor direito. O piloto e o navegador conferiam freneticamente sobre o que fazer e, conforme Rosendahl posteriormente relatou, “a minha convicção, partilhada pelo piloto, era de que não conseguiríamos regressar á base com o avião naquelas condições”. Assim, Stemann acionou o piloto automático para manter o ferido Dornier num rumo estável e ordenou a toda tripulação que saltasse de pára-quedas. Os quatro aterraram em segurança em Wembley, onde foram rapidamente detidos pela Polícia e por um grupo civis “pouco amigável”. Este seria o fim de uma história em tudo semelhante a centenas de outras, excepto que neste caso o Dornier Do 217M, agora liberto do seu lastro de quatro incompetentes humanos, e ainda carregado de duas toneladas de explosivos, decidiu continuar a missão. A uma velocidade constante, mas a perder altitude gradualmente, o bombardeiro seguiu para Noroeste. Era um alvo de sonho para os artilheiros anti-aéreos; um avião pilotado por alguém com nervos de aço, que não fazia nenhuma manobra evasiva. Mas apesar de disparar furiosamente, a artilharia AA do Norte de Londres e Hertfordshire parecia não acertar num alvo tão previsível, e o Dornier continuou serenamente no seu rumo…

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Cambridge, noite de 23 Fevereiro 1944 (Episódio 3) (Último)

Em Cambridge, 90km a Norte de Londres, as sirenes de alerta da Universidade local uivavam com intensidade. Era possível ver, á distância, rastos de holofotes em direcção ao céu e alguns flashes de luz no solo. Um cenário tão entusiasmante como aterrador. Alguns dos habitantes apreciavam o espectáculo enquanto outros procuravam a segurança de um abrigo subterrâneo. A senhora Jane Riglesford, a viver em Milton Road 302, estava habituada ás sirenes mas os ataques eram invariavelmente dirigidos a Londres – o último ataque a Cambridge tinha ocorrido em Novembro de 1943, mas todo o cuidado é pouco. Assim, Jane e um casal que vivia na sua casa, um oficial do Exército e a esposa, refugiaram-se num pequeno abrigo construído nas traseiras do jardim. Como noutras ocasiões, nada se passou, e o silêncio e tranquilidade foi absoluto. Passado algum tempo, Jane e os seus hóspedes saíram cuidadosamente do abrigo mas nada os podia ter preparado para o choque que os aguardava…


O Dornier Do 217M-1 repousa no jardim de Jane Riglesford, provavelmente cansado do longo voo ou talvez tenha decidido abandonar a missão de bombardeamento e entregar-se pacificamente aos Ingleses.

O Dornier Do 217 U5+DK descansava no jardim encostado com o nariz contra a vedação e, conforme recorda Jane, o avião parecia quase intacto. Quem sofreu o maior susto foram as galinhas na arrecadação ao lado – muitas delas perderam as penas e algumas sofriam de choque! O Dornier tinha fama de ser um avião difícil de aterrar mas o U5+DK executou uma aterragem de emergência tão suave que nenhum dos vizinhos se apercebeu do que se tinha passado até ouvirem a comoção da chegada das autoridades. Foi organizada uma busca para encontrar os ocupantes desaparecidos – mal sabiam que já estavam sob custódia em Londres por esta altura.


O nariz, apesar de construção frágil, permanece praticamente intacto. Outro pormenor são as pás do hélice dobradas – sinal que o motor desenvolvia potência na altura do impacto. A teoria de que o avião teria aterrado por falta de combustível esbarra neste facto - além de que seria bastante mais improvável que conseguisse aterrar tão suavemente sem motores.

Um dos primeiros a chegar foi um repórter de um jornal local. Apesar da proibição de aceder á área por questões de segurança, a notícia espalhou-se rapidamente e durante a semana que o avião permaneceu até ser removido, centenas de “visitantes” encheram a rua e as casas adjacentes para ver o sinistro aparelho. Um vizinho empreendedor permitia até que, pela modesta contribuição de um penny por pessoa (para a Cruz Vermelha, dizia ele), o público visitasse o local pelo seu jardim! Oficiais da RAF também acorreram ao local para analisar aquele achado único. Descobriram mais de 2700 litros de combustível nos tanques, mais do que o suficiente para regressar a França. (Alguns relatos afirmam que o avião caiu por falta de combustível, o que é totalmente disparatado) Os motores DB 603, em perfeitas condições, foram enviados para o Royal Aircraft Establishment em Farnborough. Um desses analistas escreveu no seu relatório;

Esta é apenas a segunda vez desde o início da guerra que um avião abandonado pela tripulação executou uma aterragem de emergência bem sucedida e deve ser dado tributo ao Dr. Dornier, pois o outro avião também saiu da sua empresa.

Assim, entre os muitos sucessos aeronáuticos de Claude Dornier, parece que ele possuía a capacidade inata de desenhar aviões que voavam sem necessidade de tripulação humana. Talvez ele tenha sido o verdadeiro pioneiro dos modernos drones, UAVs e UCAVs…


Esta é a bonita, tranquila e pitoresca Milton Road (casa 302 apontada pela seta) em Cambridge, nos dias de hoje. Longe vão os tempos obscuros dos bombardeamentos constantes da Segunda Guerra Mundial. Interrogo-me; quantos vizinhos saberão da curiosa visita que esta rua recebeu na noite de 23 de Fevereiro de 1944…

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